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EDITORIAL

Com o fim da primeira edição do Fórum Obìnrin, nasce o primeiro número dessa revista. E é com imenso prazer que convidamos a todas a todos para essa leitura.

Ao longo do projeto, diante das apresentações, conferencias, trocas, debate ficou evidente a comprovação do óbvio: a produção artística feminina e negra é plural e muito diversa, e um espaço essencialmente experimental, levando em consideração a configuração sistêmica na qual estamos inseridas, e ao contrário do que tenta nos fazer crer o sistema colonial, através dos espaços hegemônicos de legitimação do conhecimento. Buscar estas produções, visibilizá-las, citá-las, experenciá-las se configura como um ato político obrigatório àquelas se propõem a pensar novas éticas decoloniais.

 

Ao buscar os textos que compõem esse projeto, o ineditismo de suas publicações nunca foi uma questão. Nos interessava seguir com o mapeamento de mulheres negras e suas produções. Atitude esta que mobilizou toda a composição do Fórum e que seguirá mobilizando as minhas criações.

Boa leitura e vida longa às artista negras

 

Laís Machado
 

Juh Almeida

Todos os dias quando abro a janela do meu quarto e deixo o sol invadir e aquecer meu peito eu dou um suspiro de “vamos lá, mais um dia”. As paredes ecoam a frase “admiro a mulher forte e guerreira que você é”, me sinto semente, tesouro escondido em terra comum, terra de nós mulheres negras. Coloco o pé no chão e as armaduras pesam em meu corpo, hoje eu quero ser só eu, amarela, ensolarada, quero bailar por aí irradiando existência e voz. Hoje eu não quero ouvir que sou admirada por ser mulher.forte.guerreira. hoje eu só quero sentir o perfume das pétalas que saem pelos meus poros e celebrar minha existência.

 

Juh Almeida, artista visual, cineasta e fotógrafa, conectada a toda atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa realizada a partir da percepção das emoções e das ideias. Vida e obra estão sempre em harmonia.

1992 -Yasmin Nogueira

1992

Livro de artista Entre Margens (2016)

Yasmin Nogueira

Sobre as prateleiras, bonecas. Alvas feito a marmórea pele que

buscavam as moças vitorianas com o pó facial Ofélia, a pálida e

bela mulher morta.

Olhos de mar aberto, contudo, rasos feito poças d’água.

Seus fictícios cabelos eram feito tiras amarelas de seda ao sabor do

vento.

Os traços se repetiam, repetiam, para além da prateleira do quarto.

Estavam na televisão, nas revistas, na festa de aniversário.

Não pareciam comigo.

Nenhuma delas.

Estavam por toda parte, nesses lugares em que nunca estive, nesses

lugares em que ainda não estou.

Os acostumados a fazer das belas imagens, espelhos, nunca

souberam os amargores do lado de cá.

“Mas ela é tão bonitinha, tinha que puxar logo esse cabelo?”

As mais estúpidas torpezas ainda viriam ao associá-los aos íntimos

e adultos pelos.

Aos dois anos de idade, não compreendia o sentido das vilezas

disparadas, mas pelas feições a mim direcionadas, não haveriam de

ser agrados.

Punha-me então a chorar.

Sisuda e chorona, fui então apontada.

Perdoem-me se os desagradei. Deveria sorrir?

“Essa menina tem cabelo para umas três cabeças. Porque não

alisa?”

Ah sim! Eles foram esticados por longos 16 anos.

Conhecia a cara que tinha a beleza.

Era aquela das velhas bonecas.

Elas nunca foram negras.

YASMIN NOGUEIRA

Mulher negra, Feminista e Artista visual, seu processo de criação artística em performance, se constrói a partir das subjetividades encontradas em distintas narrativas das experiências de vida de mulheres negras no contexto brasileiro, bem como seus fragmentos autobiográficos. Atua como professora no Curso de Design da Universidade Federal de Sergipe- UFS, é mestra em Cultura e Sociedade- IHAC- UFBA e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -PPGAC-UFBA

A PRESENÇA FEMININA NA ORQUESTRA RITUAL: SUBVERSÕES IDENTITÁRIAS NO TERRITÓRIO AFRO-RELIGIOSO

A PRESENÇA FEMININA NA ORQUESTRA RITUAL: SUBVERSÕES IDENTITÁRIAS NO TERRITÓRIO AFRO-RELIGIOSO

Sanara Rocha​

Resumo

Este artigo analisa a produção da identidade feminina de “tamboreira” como elemento disruptivo da hegemonia masculina na orquestra percussiva ritual no contexto do candomblé. Ao nos determos nesta investigação perceberemos que a instituição do “tabu feminino ao tambor”, compreendido como uma “tradição milenar”, se caracteriza num problema de gênero na medida em que interdita a presença feminina no território percussivo sagrado por uma condição biológica; perpetuando uma economia significante masculinista no entorno percussivo para além do espaço sagrado. Perceberemos também que tal “tradição” não possui fluxo ininterrupto adaptando-se de acordo com cada contexto cultural étnico; possibilitando a existência de diversas casas tradicionais, no Brasil, que permitem as mãos femininas tocarem nos tambores sagrados. Esta análise se constrói a partir de textos acadêmicos e textos extraídos das páginas virtuais oficiais de algumas comunidades de terreiro, vídeos de canais afro-religiosos no youtube e de parágrafos e capítulos de livros e dissertações cuja abordagem temática dialoga com a perspectiva pretendida aqui. Como contraponto teórico selecionamos trabalhos de autores que abordam questões sobre gênero e cultura em perspectivas diversas (antropológica, psicanalítica, crítica cultural, etc), no intuito de friccionar essas questões com os dogmas presentes no contexto afro-religioso.

Palavras Chave: tambor; mulher; tabu; afro-religiosidade; subversões identitárias;

1-  INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo analisar as presenças e ausências da identidade feminina de tamboreira no contexto das cerimônias oficiais de candomblé no Brasil, a partir de um debruce sobre a instauração e disrupção do “tabu feminino ao tambor”; o qual sanciona uma hegemonia masculina na orquestra percussiva dentro e fora do território sagrado.

O discurso que sustenta a presença feminina no território percussivo afro-religioso como sendo uma prática desrespeitosa às divindades ou como um dado recente, conforme Braga, datado “da década de 1960 aos dias de hoje” (BRAGA apud SILVEIRA, 2008, p.16) não leva em conta a profusão de etnias e a heterogeneidade dos dispositivos culturais que constituem a noção de cultura afro-brasileira. A exemplo disto temos nações tais como a Jeje, cuja liderança feminina na maior parte das práticas culturais cotidianas é, no mínimo, significativa; as originárias de Ilesa, cuja divindade cultuada era, e ainda é, a orixá Oxum, patrona da fertilidade feminina; dentre outras etnias africanas que superam a naturalização da interdição da mulher aos postos de liderança nas culturas tradicionais.

Para além disso, a instituição do tabu feminino aos espaços de poder no âmbito do sagrado, sendo a interdição ao território percussivo apenas mais uma dessas restrições da mulher aos espaços de poder, consiste no que as autoras Mayra Faro e Lucielma Silva compreendem como “um eficaz mecanismo do gênero masculino para interditar o feminino inclusive nos espaços onde elas (as mulheres) têm poder hierárquico” (FARO E SILVA, 2011, p 19); ou seja, configura-se como campo de disputa histórica entre os gêneros, não como uma regra universal e  irrefutável.   

O sangue menstrual feminino sempre esteve associado a valorações simbólicas em diversas sociedades as quais ora atribuíam-lhe carga positiva, relacionando-o com a fertilidade da terra, a fartura, a riqueza das colheitas, etc. Ora com carga negativa vinculando-o ao mal presságio e à impureza. O que levou a uma associação direta da própria figura da mulher com estas mesmas valorações, tornando-a tabu, objeto de prevenção e de fascínio masculino desde as sociedades primitivas; conferindo-lhe poder, “por sua natureza ambivalente” (AUGRAS apud NOCCIOLI e PAES, 2011, p 7 e 8), concomitantemente a um ligamento dessa natureza e desse poder ao perigo e ao mal que precisam ser segregados para o bem do coletivo.

                       

2-DO NASCIMENTO DO TABU FEMININO AO TAMBOR

Ao analisarmos os discursos produzidos no interior dos espaços afro-religiosos acerca da orquestra percussiva, rapidamente, nos damos conta de que esta é essencial não somente à concretização da anunciada conexão entre divindades e médiuns, mas, sobretudo, para a efetiva dinâmica das trocas simbólicas geradas no decorrer do rito. O que ratifica a constatação de Ângelo Cardoso (2006) acerca da música como elemento fundamental da dinâmica do axé – principio dinâmico de energia (SODRÉ, 2005) -, nos espaços afro-religiosos, sem o qual não seria possível a efetivação do ritual.

Tratados tal qual um orixá – deidade iorubana - os tambores afro-religiosos submetem-se a um complexo ritual de iniciação, onde serão “sacralizados, alimentados, vestidos; possuirão nome próprio e apenas sacerdotes e pessoas de importância para a comunidade poderão tocá-lo e usá-lo no ritual” (LODY e SÁ apud. CARDOSO, 2006, p.65).

Assim, torna-se óbvio que dentro do contexto afro-religioso o tambor assume uma importância que vai além da de um artigo estético musical. Ao cruzar a fronteira do sagrado ressignifica-se como veículo de uma linguagem que poucos sujeitos serão capazes de decodificar, mas da qual todos dependerão para a manutenção da ordem ritualística. Sendo visto ora como agregador simbólico através do qual toda a comunidade afro-religiosa, reterritorializada nas associações –egbés-, no Brasil, podem reviver os seus mitos e preservar seus dispositivos culturais (SODRÉ, 2005) ora como um procedimento de exclusão e, naturalmente, instrumento de exercício do poder (FOUCAULT, 2014).   

Sobre o território percussivo como espaço excludente, a citação de Barros descrevendo o cargo do Alabê, ou sacerdote principal do tambor sagrado, possui caráter elucidativo:

                               

A orquestra é comandada por um especialista – o Alabê.  Trata-se de um título honorífico dos mais respeitados nas comunidades religiosas. Cabe a ele além da função de entoar os cânticos e iniciar no aprendizado litúrgico os que ainda se encontram em formação, zelar pelos instrumentos musicais, e conservar sua afinação e confirmar as cerimônias de consagração daqueles que, produzindo os sons da música estabelecem a relação entre os homens e as divindades. Os instrumentos musicais recebem, por isso, carinho e consideração especial, somente os iniciados podem neles tocar e as mulheres apenas em situações particulares. (BARROS apud CARDOSO, 2006, p. 70)

 

Conforme em Tomaz Tadeus Silva (2012), compreendemos que a produção da identidade se constrói a partir da diferença. Do mesmo modo se dá a construção da identidade de Alabê, a partir da produção de outras identidades diferentes que não são a de Alabê. O que nos revela que tal título, ao ser atribuído àqueles sujeitos que são “honrados” e, por isto, podem ser “iniciados” no fundamento sagrado do tambor, não será atribuído aos sujeitos “não honrados” e impedidos de se iniciarem. Estes sujeitos serão majoritariamente femininos segundo implícito na citação de Barros onde vemos que o grupo de iniciados e o grupo de mulheres não estão contidos um no outro. Também vemos que as mulheres poderão “tocar” nos tambores – em vez de serem iniciadas- “apenas em situações particulares”.

     

Segundo Baba Leandro Ty odé (2016), a justificativa para a interdição feminina ao tambor se dá no “Bajé”, palavra iorubana - que significa dentre outras coisas: ruim; estragar; mofar; apodrecer (NAPOLEÃO, 2011, p.58) – referente à menstruação feminina no contexto cultural tradicional iorubano; como um período de “negatividade” e “impureza” da mulher. Tal informação “milenar”, segundo Baba Leandro, teria sido transmitida ao longo de gerações pelos “povos ancestrais africanos” devendo, assim, ser preservada.

           

Contudo encontramos em “Os nagô e a Morte ” de Juana Elbein dos Santos a seguinte passagem que nos apresenta a divindade Oxalá reverenciando o mistério –awo, no idioma iorubá- do sangue menstrual feminino metamorfoseado por Oxum na pena de ekódídé, no interior da cosmogonia Nagô:

Òdòfin Dòdòbálè K’Obirin. Òdòfin. (Òrìnsàlà) saúda prostrando-se frente a mulher. Mesmo o grande Òrisà funfun faz o dòdòbàlè – alongando-se no solo,

tocando-o com o peito em sinal de respeito e de submissão – diante do poder da gestação. O corrimento menstrual representa o poder de gestação. Do mesmo modo que o sêmen é chamado: ohun-omokùnrin, o corrimento menstrual é chamado: ohun-omobirin. Nesse contexto, o vermelho representa o poder da realização, o asè de gestação,

humana, animal, vegetal, mineral; o asè da terra também simbolizado por suas águas que o veiculam. A gestação significa abundância, riqueza. (SANTOS, 2012, p.94)

O que contradiz a noção da menstruação como “impura” ou “negativa” aproximando-a muito mais de “sagrada” e “misteriosa” com todos os rituais que a acompanham ratificando a natureza animal e cultural da mulher (AUGRAS, 1989).

 

Sobre o que caracteriza a herança cultural afro-brasileira deixada para nós por estes “povos ancestrais africanos” referidos por Baba Leandro Ty Odé, Muniz Sodré salienta que:

é preciso deixar bem claro que não se tratou jamais de uma cultura negra fundadora ou originária que aqui se tenha instalado para, funcionalmente, servir de campo de resistência. Para cá vieram dispositivos culturais correspondentes às várias nações ou etnias dos escravos arrebatados da África entre os séculos XVI e XIX. Tais culturas já conheciam mudanças no próprio continente africano em função das reorganizações territoriais e das transformações civilizatórias (...) (SODRÉ, 2005, p.92)                                                                                                                      

Tal fala nos ajuda a pensar no próprio Candomblé como processo de hibridação, conforme Canclini (2008), que funde dispositivos culturais para gerar novas éticas, mecanismos e modelos estruturais.

 

Neste caminho, surgem algumas questões que logo adiante tentaremos responder: diante da hibridez cultural que a própria concepção de candomblé abarca, existirão terreiros de candomblé que permitam mulheres dinamizarem a energia sagrada evocada pela orquestra ritual? O “tabu feminino ao tambor” será uma imposição milenar das deidades iorubanas ou será uma tradição inventada na forja de uma comunidade religiosa específica?

3-DISRUPÇÕES DA HEGEMONIA MASCULINA NO TAMBOR

Baba Orlando J. Santos (2015) em seu canal do youtube: “Awon Oju Egbè”, afirma que mulher não pode tocar no candomblé. Dentre os motivos explicitados por ele para esta proibição categórica, são estes os principais: o fato de o atabaque ser construído a partir da madeira de uma árvore consagrada à sexualidade masculina em África, segundo Baba Orlando, tornaria o atabaque, em si, um instrumento masculino; mulheres não são dotadas de resistência física, sendo, assim, inaptas a tocar durante sessões rituais que muitas vezes se estendem durante longas horas; mulher não tem habilidade para tocar tambor.

 

Não podemos deixar de notar nas observações de Baba Orlando a total e completa ausência da menção ao “bajé” e da menstruação feminina como fator impeditivo. O que nos mostra que “ é no significado que cada grupo atribui a elementos que compõem seu mundo que devemos buscar a compreensão do tabu” (AUGRAS apud NOCCIOLI e PAES, 2012. p.2). A despeito disto, concentraremos nas premissas de Baba Orlando para enumerar algumas antíteses:

 

1-Na dissertação “ Batuque de Mulheres”, Ana Paula Lima Silveira nos apresenta um estudo etnográfico da trajetória de três mulheres tamboreiras atuantes no contexto musical afro-religioso do extremo-sul do Brasil.  Compreende-se como “Batuque” a religião que surge e se constitui no início do século XIX, no Rio Grande do Sul, segundo dados colhidos em campo na referida investigação. Nesta congregação religiosa fundem-se dispositivos culturais de nação Oyó, Jeje, Ijexá, Cabinda, Nagô e Ketu; 12 orixás diferentes são cultuados neste contexto.

 

Em seu estudo a autora acompanha a forja das identidades femininas “tamboreiras de nação”, mulheres iniciadas e treinadas para a execução percussiva nas cerimônias rituais oficiais. Tal dado contradiz a crença na inexistência dessas identidades femininas no contexto afro-religioso e problematiza a interdição ou restrição feminina ao tambor como sendo “milenar”. Sobre isto, a autora ainda afirma que conforme lhe foi dito pelas próprias mulheres tamboreiras de nação, a medida restritiva da mulher no universo percussivo sagrado é de ordem humana e não divina (SILVEIRA, 2008);


2-Outro dado que a autora nos apresenta é o sentido de “profissão” que os tamboreiros homens atribuem ao cargo de músico ritual enquanto que para as mulheres um “sentir” e “vivenciar” a religião se impõem mais fortemente. Tais noções diferenciadas, segundo a autora, se expressam no modo como esses tamboreiros homens circulam como músicos contratados para tocar em festas de outros terreiros enquanto as tamboreiras mulheres, ao se dedicarem exclusivamente às suas casas religiosas, cooperariam na produção de uma invisibilidade da presença feminina neste cargo do tambor, o que por sua vez ocasionaria um reconhecimento maior dos tamboreiros em tal função.       

 

3-Em “Religiões Negras No Brasil”, Valéria Costa e Flávio Gomes (2016) apresentam vestígios de mulheres angoleiras que batiam tambores nos “famosos” Calundus de Luzia Pinta, desde o período inquisitorial brasileiro. Esses Calundus, segundo as autoras, podem ser considerados como desencadeadores da ordem litúrgica umbandista, comprovando a presença feminina no cargo do tambor em rituais sagrados no Brasil, desde o século XVIII.

 

4-Ângelo Cardoso, em sua tese “A Linguagem dos Tambores (2006)” nos fala que a corte do orixá Xangô, conhecida como “iánassô” em África, a qual nomeou a primeira geração do candomblé tradicional da Casa Branca em Salvador, era um culto praticado, exclusivamente, por mulheres. O mesmo autor constatou a essencialidade da orquestra percussiva para a efetivação ritualística candomblecista, sem a qual seria impossível dinamizar o axé; sugerindo-nos a possibilidade de nesta primeira geração de candomblé as mulheres tocarem, dentre outras coisas, os tambores sagrados. 

 

Muitos outros dados históricos servem como base argumentativa para questionar as premissas de Baba Muitos outros dados históricos servem como base argumentativa para questionar as premissas de Baba Orlando e a noção naturalizada do “tabu feminino ao tambor” nos espaços afro-religiosos, suscitando as seguintes especulações: o “tabu feminino ao tambor” possivelmente não se fundamenta numa restrição de ordem divina e sendo de ordem humana varia de acordo com “regras”

estabelecidas por cada grupo tradicional étnico; a concepção de “mercado percussivo religioso” que produz a noção de “profissionalização” dos batuqueiros homens, instaura uma atmosfera de disputa, onde “melhor profissional” será aquele que circular por um número maior de casas religiosas; a diversidade de tradições percussivas inseridas no contexto afro-religioso no Brasil, permite-nos admitir que provavelmente não só existem tradições que permitem mulheres ao tambor, como talvez instaurem também uma hegemonia feminina em alguns rituais e situações particulares para divindades específicas.

4-CONSIDERAÇÕES FINAIS

  

Pudemos ver neste trabalho os alicerces que fundamentam a perpetuação do tabu feminino ao tambor no contexto do sagrado; o qual estabelece uma hegemonia masculina neste território que compreendemos, aqui, como espaço de exercício de poder. Do outro lado, vimos também as identidades subversivas femininas de batuqueiras operando numa contra hegemonia ao longo do processo histórico afro-religioso desde África, interrompendo o padrão heteronormativo com a sua presença conflituosa.    

 

Sabemos que as práticas culturais preservadas no terreiro muitas vezes sobrepujaram estes espaços e influenciaram a ordem social cotidiana afro-brasileira operando para uma introjeção, na cultura oficial nacional, de princípios, costumes e expressões afrodescendentes. O que revela a necessidade de certas tradições serem revisitadas por cooperarem para a instituição de hegemonias identitárias, perpetuação de estereótipos e acirramento das disputas por espaços de poder entre os gêneros.

 

Em “Samba no feminino” Rodrigo Gomes (2011) ratifica isto ao perceber significativa influência das convenções religiosas do candomblé na organização estrutural sexista do samba”. Já Katharina Doring (2016), em seu artigo que integra a antologia “As bambas do samba”, também constata que a busca por “profissionalização” das práticas culturais afro, sejam religiosas ou não, influem diretamente no afastamento da presença feminina como fator de importância. Hoje, a autora observa, embora tenha um lugar “mitificado da mulher na historiografia do samba, ele continua com um rosto masculino e mestiço” (SANTANA, 2016, p.22). 

 

Compreendemos, através de Butler (2003) que o mesmo dispositivo de “repetibilidade” que instaura uma hegemonia identitária serve para a “interrupção” dessas mesmas hegemonias. Depreender isto aciona o olhar sobre a identidade masculina de tamboreiro no território sagrado não mais como hegemônica, mas produzida socialmente, construída através de rígidos mecanismos de segregação e produção de diferenças. Os mesmos mecanismos que produziram a noção problemática de “impureza” menstrual da mulher, apartou-a dos espaços de poder no âmbito do sagrado e ocasionou a rarefação da sua presença no universo percussivo como um todo.

 

Não obstante, houve resistência, e embora rarefeita, a presença feminina no âmbito percussivo se constitui no mais eficaz mecanismo de contraprodutividade percussiva (PRECIADO, 2014) e subversão das identidades hegemônicas.   

REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique. O que é tabu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A Linguagem dos tambores. 2006, 256 f. Tese (Doutorado em Música/ Etnomusicologia) – Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, 2006.

COSTA, Valéria. GOMES, Flávio. Religiões negras no Brasil: da escravidão a pós-emancipação/ (org.) Valéria Costa e Flávio Gomes. São Paulo: Selo Negro, 2016.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiros: Paz e terra, 2017.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

GOMES, Rodrigo Cantos Savelli. Samba no feminino: transformações das relações de gênero no samba carioca nas três primeiras décadas do século XX. 2011. 157 f. Dissertação (Mestrado em Música, Musicologia e Etnomusicologia) – Universidade do estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2011.

NAPOLEÃO, Eduardo. Vocabulário ioruba: para entender a linguagem dos orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: N-1 edições, 2014.

SANTANA, Marilda. As bambas do samba: mulher e poder na roda. Salvador/ Marilda Santana (org.): Edufba, 2016.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàde, àsèsè e o culto ègun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 2012.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SILVEIRA, Ana Paula Lima. Batuque de mulheres: aprontando tamboreiras de nação nas terreiras de Pelotas e Rio Grande, RS. 2008. 163 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Filososfia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.   

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

Artigos de periódicos em meio eletrônico

FARO, Mayra Cristina Silva. SILVA, Lucielma Lobato. Poder e (Im)pureza do corpo feminino na tradição afro-paraense mina-nagô e na pajelança cabocla. Revista de Estudos amazônicos, Pará, v. VI nº 2. 2011. Disponível em: http://www.ufpa.br/pphist/estudosamazonicos/arquivos/artigos/2%20-%20VI%20-%205%20-%202011%20-%20Mayra_Faro_Lucielma_Silva.pdf. Acesso em: 4/10/2017.

NOCCIOLI, Carlos Alexandre Molina. PAES, Cristiane Cataldi dos Santos. A mulher como alvo de tabu: o fascínio da ambiguidade feminina. Revista de ciências humanas. Viçosa, v. 12. Nº 2. 2012. Disponível em: http://www.cch.ufv.br/revista/pdfs/vol12/artigo1evol12-2.pdf. Acesso em: 04/10/2017.

Vídeo on-line youtube

ODÉ, Leandro Ty. Asé araye: explicando porque mulher não toca coro (atabaque). Youtube, 11 de novembro de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SuyqhdAXdR4. Acesso em: 29/09/2017.

SANTOS, Orlando J. Awon oju egbé: mulher pode tocar atabaque no candomblé? 22 de março de 2015.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qODrxthYc5I&t=30s. Acesso em: 29/09/2017.

Cair - Daniela Lisboa

C A I R

Daniela Lisboa

Tava aqui pensando em cachoeira. É água procurando a terra.

É água em queda, velocidade, beleza, energia, potência. E aí

pensei também em choro, em chuva, em torneira e até

em fonte. A água sempre querendo o chão. Água está

sempre escorrendo. Para baixo e seguindo em frente.

Água segue. Água viva. Água vida. É tanta água.

É tanta alma, é tanta água alma num corpo.

A cachoeira ca

indo me ensina cair também. Cair. Esse ca

ir, uma oportunidade de seguir. Eu tava pensando em lágrima.

Vi uma uma mulher guerreira chorar e a dei colo. Alguém cantou que foi na beira do rio que

Oxum chorou e pensei que

se até Oxum chora, por que eu pequenininha não ia chor

ar também, hein. a mulher guerreira chorando não deixou

de ser uma mulher guerreira. Chorar não tira a força

de ninguém, posto que choro é movimento e movimento

por sua vez gera força. Quando essa mulher é negra a lágrima

é água sagrada, águaYabá. Dizem que não, mas uma mulher negra pode e deve

chorar. Sua força em queda, pé d’água, cachoeira, capoeira: cai, cai, cai para atacar. Seguir. Sempre tô

falando de cair, de chorar, de fazer disso um encontro d

e amor e entrega. Porque são nessas quedas que pro

curo o divino. Hora de fazer pedidos. A queda é um retorno

à terra. A queda da cachoeira é um retorno ao mar. A queda é

um retorno à fonte. É um retorno a si mesmo, aos primór

diós. Cair para re

caminhar. Caminho se faz no chão.

e "andar na t

erra traz muita sorte"

Daniela Lisboa, 25, nasceu no Sertão da Ressaca (Vitória da Conquista), mora em Salvador e é graduanda em Dança pela UFBA. É atriz, percussionista, sambadeira, angoleira, preta mãe e curiosa. Começou a fazer teatro em 2007 e desde então segue vivendo, pesquisando e amando circular e entrelaçar ancestralidade, arte, política nas suas práticas poéticas. Atualmente integra o grupo A Corda Samba de Roda que atua no subúrbio de Salvador, promovendo atividades artístico-pedagógicas que visibilizam a cultura negra e periférica

Mãe Correria - Nathê

NATHÁLIA FERREIRA (NATHÊ)

Este trabalho foi realizado a partir de uma encomenda feita por uma marca independente de roupas de uma comunidade de Salvador, Nordeste de Amaralina chamada DuGuetto. Foi baseado numa fotografia de Helen Salomão feita no making of do ensaio. Tentei adicionar o corpo dessas três mulheres em uma narrativa curvilínea, trabalhando com seus diferentes corpos, idades e tamanhos através das cores.

Redes sociais com trabalhos

https://www.facebook.com/desbravandoalemmar/

https://www.instagram.com/desbravandoalemmar/

O QUE VOCÊ VÊ QUANDO OLHA PARA UMA MULHER NEGRA?

O QUE VOCÊ VÊ QUANDO OLHA PARA UMA MULHER NEGRA?

Danielle Anatólio – Mestranda em Artes Cênicas/UNIRIO e Atriz do espetáculo Lótus​

Os signos normativos e normalizadores pautados no discurso colonizador que é referenciado pelo padrão artístico europeu coíbe o corpo negro feminino à medida que este não se adequa na narrativa da arte brancocêntrica e patriarcal. Os estereótipos herdados da colonização afetam profundamente a mulher negra com a dominação e coerção corpórea. Este texto trata sobre meu espetáculo Lótus: em cena, o universo de mulheres que trazem em suas afetividades histórias invisibilizadas pelo imaginário social.  O espetáculo fala de amor, superação, beleza e vida, isto dentro de um contexto de solidão e preterimento em que está  inserida a mulher negra que é hipersexualizada, além de contar os caminhos que essas mulheres encontram para resistir e reexistir.


Se no passado as negras não eram vistas como mulheres para casar, ainda hoje esse olhar permanece. As mulheres negras ainda são vistas pela ótica do sexo, são tratadas como pessoa que existe para servir, para ouvir, para acolher, para solucionar problemas, para sanar os desejos sexuais. Ser cortejada e amada nunca foi um lugar ocupado pela mulher negra que permanece sendo preterida.
 

Lótus se fez da minha necessidade de ressignificar cenicamente a corporeidade negra feminina e de experimentar uma estética afrodiaspórica que utiliza os elementos da performance negra enquanto constituintes de criação artística, para isso utilizo a dança afro contemporânea como preparação física, a musicalidade afro-mineira, pautada nos tambores do Congado Mineiro, e a percussão ao vivo que toca o barravento de Iansã e o ijexá de Oxum. Além disso, Lótus teve como finalidade visibilizar artistas mulheres, por isso toda a ficha técnica do espetáculo foi composta por mulheres negras. Mesmo em tempos de grandes discussões sobre feminismo negro mulheres negras artistas ainda são pouco valorizadas e suas produções descredibilizadas.

 

Em Lótus trabalho com 3 personagens, circulando ora pela performartividade ora pela representação, 3 histórias  são contadas e todas elas tem em comum a solidão e a hipersexualização dos corpos negros femininos. Um ponto nevrálgico do espetáculo é o jogo estabelecido com o público a partir da pergunta chave: O QUE VOCÊ VÊ QUANDO OLHA PARA UMA MULHER NEGRA? Neste momento toda a plateia é convidada a escrever no meu corpo suas definições.

 

Os homens, em maioria, têm grande dificuldade e incômodo para se colocarem publicamente, enquanto as mulheres respondem de imediato e com certo alívio, algo que posso classificar como um “desabafo”, como se esse momento fosse uma

oportunidade de dizerem o que normalmente está preso, silenciado. Digo isso pelo fato de saber que como mulher negra falar sobre os próprios incômodos nunca foi comum ou simples, mais do que isto, historicamente não fomos permitidas a falar, como ressalta Gayatri Spivak em sua obra Pode o Subalterno falar? na qual a mesma analisa a opressão histórica sofrida pela mulher: O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um ítem respeitoso na lista de prioridades globais. A representação definhou. A mulher como intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não pode rejeitar como um floreio.

Se por um lado a sociedade branca patriarcal silencia e não escuta essa mulher, por outro a própria mulher negra internaliza que não pode nem deve falar sobre o que lhe afeta e esse exercício da fala é, sem dúvida alguma, um aprendizado longo, processual, pois o ato da fala implica também em se ver como sujeito que pode falar e concretizar seu poder enquanto pessoa que tem potencialidade e legitimidade na verbalização.

 

Neste sentido, dentro do jogo que é estabelecido é fundamental dar espaço para que as mulheres da plateia possam falar e exercer, como diz Grada Kilomba, em Plantation Memories: um modo de “tornar-se sujeito” para trazer à tona a realidade do racismo (e machismo) diário contado pelas (próprias) mulheres negras baseado em suas subjetividades e próprias percepções.


Lótus circulou as capitais dos Estados da Bahia, Minas Gerais e Rio De Janeiro, em todas as apresentações as respostas dos homens se contrapõem às das mulheres; enquanto eles, em sua maioria, definem as mulheres com significados estigmatizados, grande parte das mulheres dão definições que perpassam pela hiper sexualização do corpo negro feminino. Vejamos algumas das palavras que o público traz: Palavras ditas pelos homens: força, guerreira, muralha, militância, rainha nzinga, sedução, sensualidade, mulher ativa, resistência, mãe-África, professora, cuidadosa, força, uma mulher assim como as outras. / palavras ditas pelas mulheres: objeto sexual, fácil, um pedaço de carne, tesão, puta, mulher que dá conta de tudo, excitação, um mero corpo, mãe, empregada.

Pude observar em algumas apresentações que muitos homens fazem suas definições demonstrando bastante raiva ou insatisfação por serem alvo desta pergunta. Ao que parece sentem-se no direito de não terem questionados o seu machismo e privilégios 

enquanto homens que dentro da lógica patriarcal é

permitido estabelecer qualquer tipo de relação com e sobre as mulheres. Além do incômodo de serem questionados publicamente, há também uma insatisfação no momento em que é dado espaço para as mulheres falarem, quando inicio a pergunta à primeira mulher muitos olhares masculinos são de constrangimento ou de recusa.

Porque as respostas das mulheres se opõem tão drasticamente às dos homens? Porque as mulheres negras trazem respostas que as resumem como objeto sexual ou no estereótipo de mulher-forte? Porque os homens sentem-se contrariados ao serem indagados?

As definições denotam a desigualdade existente nas relações entre mulheres negras e homens, enquanto muitas delas dizem que são vistas pela ótica da sexualização, os homens as colocam num lugar perigoso que reforça não só os estigmas já existentes, quanto um lugar de complexidade, como por exemplo, quando as denominam de mãe-África. Aqui, se percebe que tal qual o próprio continente africano, que é referência na história da origem e evolução da humanidade, mas é desvalorizado ou exotificado, a mulher negra também é a mãe-África subjugada e esquecida pela sociedade.

Para subverter essa lógica proponho em Lótus mulheres que se transformaram ao enfrentar as mazelas do seu tempo. Não são mulheres apenas guerreiras e desbravadoras, são mulheres frágeis, sensíveis, que choram e que por muitas vezes pensam em desistir de combater o machismo, entretanto além de clamar suas ancestralidades como forma de fortalecimento, se empoderam politicamente para superarem a opressão vivenciada. Dessa forma, as personagens não são super mulheres que dão conta de tudo, ao contrário disso a dramaturgia de Lótus quer ressignificar o conceito de “mulher negra fortaleza” trazendo em suas representações momentos de vulnerabilidade. Isto porque ao longo da história a sociedade construiu um imaginário em que o emocional da mulher negra suporta tudo, devendo sempre ser o pilar das relações e arcar com todas as dores e ônus. Assim, através das histórias das personagens se busca romper com a ideia cristalizada que reduz e defini a mulher negra apenas como uma mulher forte, podendo esta ser delicada e frágil, não no sentido machista que compreende a mulher como sexo frágil, mas no sentido de poder se colocar num lugar de sensibilidade, falar de suas dores, entrar em estado de choro e ser ouvida. Enfim, ser o que ela mesma quiser, desacorrentando as amarras da sociedade racista e machista hetero-patriarcal.

Triptika Amanda Souza

‘Preta velha’
Grafite sobre papel offset
42x29,7cm
2018

‘Inadequação’
Grafite sobre papel offset
43X29,7CM
2018

‘A rainha do mar anda de mãos dadas comigo’
Grafite sobre papel offset
42x29,7cm
2018

AMANDA SOUZA

Artista recifense graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco. Atua nas diferentes linguagens com trabalhos nas técnicas de gravura, desenho, performance e iluminação cênica. Durante quatro anos desenvolveu projetos de Arte/educação e criações cenográficas no Coletivo Eu Passarinho que se destaca por utilizar o papelão como matéria prima de suas composições, transformando-o em cenários, brinquedos e objeto de estudo. Participou do VIII ÚNICO – Salão Universitário de Arte Contemporânea do Sesc PE com a obra “Opanijé – Experimento sonoro-visual-ancestral-performático“ em 2016-2017.Busca em seus trabalhos uma estética que consiga transmitir sentimentos e vivências ligadas a construção de sua identidade racial e temas afetivos. Atualmente também pesquisa e desenvolve
desenhos de luz com material de baixo custo para performances. Já participou de exposições coletivas e apresentações na Galeria Capibaribe (UFPE), no Sesc Casa amarela e Petrolina, no Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro (MUAFRO), Cia Compassos de dança e MAMAM, em 2018 foi curadora da exposição “Vermischtes” de Terezinha Malaquias em Freiburg- Alemanha. 

contato: desouzza.amanda@gmail.com
(81)9 9733-9655
@desouzza.amanda
https://amandadesouza.carbonmade.com/

Ilustraçãoes Karoline Kembler

Coral.Coral.Coral. Coral na cachoeira de oxum. Nanquin.2017

Incorporação. Nanquin sobre papel. 2017

KEROLAYNE KEMBLIN

Artista visual, negra, feminista e filha de santo nascida e criada em Manaus, Amazonas. Iniciou sua carreira artística na Universidade Federal do Amazonas –UFAM, onde formou-se no curso de Artes Visuais, no período de 2013/2016, através das múltiplas experimentações vividas na academia. Desenvolveu trabalhos em modelagem, desenho, pintura, e hoje se destaca com a gravura, e a pintura, onde trabalhou nas séries ‘’O ciclo sagrado das mulheres e as folhas.’’  e ‘’ Mulher, Alma e espírito.A força que habita o peito.’’ Sua produções dos últimos anos ganharam forma e conceito, no ano de 2016, onde passou a ter sua obra caracteriza pelo misticismo, onde envolve a mulher, a maternidade, a natureza, os ciclos e as fases femininas. No ano de 2017, passou a explorar no seu trabalho a auto descoberta proporcionada através de sua religião (umbanda), fator recorrente em seus últimos trabalhos. No ano de 2017 estreou também como atriz no filme, "De Gira e Mato", dirigido pela cineasta amazonense, Keila Serruya. Em 2018 inaugurou sua primeira exposição individual chamada "Para cada vela um pedido", na Galeria do Largo.  Atualmente, trabalha com produção de eventos voltados para o publico negro, militante das causas afroreligiosas, feminista, e artisticamente na produção de pinturas e gravuras voltadas as suas experiências como filha de santo.

Sereia e Serpente - Lia Braga

Sereia e Serpente...

Lia Braga

Fogo e Paixão, criação e destruição, filha e mãe. Mãe das cabeças, que governa os pensamentos e as emoções, mãe dos filhos peixes. Útero do ventre sagrado, de teus seios fartos e lacrimosos jorraram as águas. De tua origem africana formaram-se os rios. Negra, farta, gorda, imensa, generosa, acolhedora, intempestiva como as marés que aqui te aportaram.

Tu dás, recebe e exige, porque mereces. Rainha soberana em minha vida, eu sou tua, a minha cabeça é tua e eu honro a missão que tu me deste, junto a toda minha ancestralidade e espiritualidade, a levar um pouco deste axé e luz dos orixás pelos mares da arte e da educação.

Com o corpo, o espírito e a mente a navegar, para brincar e se encantar com inúmeras sensações. Dançar e embalar muitas emoções e tantos erês em meus braços, assim vou sentindo um pouco deste sentimento mãe. Ao mesmo tempo, em que vou preparando-me para este desabrochar, porque ainda sou tão menina, tua menina criança.

Nem de longe eu te vejo como uma deusa branca, esta imagem é até um pouco estranha para mim, como aqui no Brasil te veneram com estes olhos e respeito. Para ti pouco importa como te veem, pois tu não distingues, nem segrega, tu acolhes, une e reúne tantos filhos e filhas peixes.

Tantas sereias, filhas tuas, nós ondinas/ninfas brotamos também de tuas águas. O elemental sereia faz parte do teu mundo e tu até podes te transformar em sereia se assim quiseres, mas esta dimensão é pequena demais para tua grandiosidade, mas sim, tu encantas e enamoras, tu fascinas. Reside aonde quer e com que quer, quando te tratam com respeito, carinho e amor. Se não, foge, com coragem e liberdade, porque tu só mereces o que há de melhor, assim como nós, tuas filhas.

Tu és guerreira e potente geradora. Ah minha mãe, quantos segredos a senhora guarda das profundezas marítimas e eu mesmo sentindo-te no meu íntimo e em todo o meu ser, ainda tenho muito a descobrir sobre este nosso mar de emoções. Adúpé minha mãe Iemanjá.

Obrigada!

LIA BRAGA

Artista, educadora e pesquisadora, é natural de Fortaleza/CE. Desde criança, possui formação livre e posteriormente profissional em artes. Intérprete-criadora, transita em seus trabalhos a partir de hibridizações, como atriz, bailarina, contadora de histórias, também com experiências como performer e modelo vivo. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. Licenciada em Teatro pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará/IFCE. Foi integrante do Grupo de Pesquisa NACE – Núcleo das Africanidades Cearenses/FACED/UFC e de alguns coletivos artísticos, como o grupo de dança-teatro Centro de Experimentação em Movimento/CEM. Nos ensinos de dança e teatro, possui experiência a partir de 2012, como monitora/bolsista, desde a etapa da Educação Infantil, em instituições e escolas públicas em Fortaleza/CE. Sua pesquisa envolvendo ludicidade e infância, desde 2014, é voltada para os corpos brincantes de crianças, a partir da delimitação do objeto de estudo de sua monografia, no mesmo ano, que é tema de sua primeira publicação em livro “Onde o Corpo é Jogo: Uma Mediação Lúdica na Educação Infantil” (2017). A partir de 2016, estabelece diálogo com as relações étnico-raciais com foco nas
africanidades, através do universo dos orixás. Estas proposições são ancoradas nas linguagens da dança e do teatro, com uso de elementos de musicalidade, através de mediação lúdica com contação de histórias e jogos/brincadeiras corporais. Diretora e Intérprete-Criadora do espetáculo infantil “Axé Odara: O Encanto dos Orixás”, contemplado no edital “Temporadas das Artes: Ocupa Sobral” pelo
Instituto ECOA e que teve sua estreia em fevereiro de 2018 na programação “Domingo das Crianças” no Theatro São João, na cidade de Sobral/CE.

E-mail:liafbraga@yahoo.com.br
f/bragalia e f/corpobrincante

ASSÉDIO, RAÇA E AUTOBIOGRAFIA NA PERFORMANCE CARTA BRANCA

Yasmin Nogueira

Resumo

Este ensaio mostra o processo de criação da performance intitulada Carta Branca, que integra a pesquisa em desenvolvimento no Doutorado no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC - UFBA, que investiga a práxis artística por meio da linguagem da performance, sustentada em narrativas construídas a partir da justaposição da autobiografia da autora, e de traços de histórias de vida de outras mulheres negras em diferentes contextos e épocas. A criação integrou o projeto Diário Rosa, cujo tema central de debate, foi o assédio/abuso sexual contra mulheres.

 

 Palavras-chaves: Mulher Negra, Assédio, Processo de Criação, Performance.

A Performance Carta Branca parte da autobiografia enquanto ferramenta para um conhecimento de si, que perpassa os encontros e desencontros com o outro, buscando as subjetividades, as experiências vividas acerca do assédio e abuso sexual em suas diversas manifestações. Procura adentrar, também, a partir de uma fusão Eu/Outras nas subjetividades enquanto marcadores de diferença acerca do sujeito negro feminino por meio da produção artística.

O processo de criação da obra se deu no contexto do projeto Diário Rosa, ocupação composta por mulheres do Teatro Gamboa Nova em Salvador-Bahia de 1 a 11 de Junho de 2017, que envolveu mostras de filmes, bate-papos, música, exposições e o espetáculo teatral de mesmo nome como eixo do projeto construído por meio de imersão biográfica trazendo à tona relatos de experiência das artistas envolvidas e de outras mulheres, tendo, também, inspiração no livro O Caderno Rosa de Lory Lambi, da escritora Hilda Hilst.

No percurso da criação, foram coletadas diversas histórias de mulheres sobre abusos/assédios/estupros via plataforma digital, de maneira anônima. Tais relatos conduziram o processo de criação do referido espetáculo, toda a ocupação do Teatro, assim como a performance Carta Branca. As histórias contadas se uniram as narrações das atrizes e demais participantes da ocupação. Passei também a refletir sobre minhas recordações. Por meio do acesso à memória, é possível estabelecer uma relação do presente com o passado, possibilitando não somente o afloramento de vivências longínquas, mas a percepção das vivências atuais.

A escrita autobiográfica oferece uma possibilidade de, por meio da narrativa de si, o autor retomar sua história, e resignificá-la. A partir da escrita de si, busco também a escrita do outro como afirmação das falas não autorizadas, entendendo o espaço autobiográfico como forma de contestar hegemonias.

O corpo é a superfície onde se inscrevem acontecimentos, nele, nascem desejos, medos, erros. É, também, um lugar em que questões como gênero e identidade podem ser lidos. Minhas experiências enquanto mulher, negra, lésbica, cisgênera e diversas outras afirmações identitárias entendidas como marcadores de diferença, transitam pela experiência do corpo, identidades pensadas enquanto interpretações e não como verdades imutáveis que constituem um ser.

A escrita de si pode ser uma possibilidade de compreensão da relação entre vida pública e privada. Segundo Rovina (2008, p.11), o caráter confidencial de uma escrita autobiográfica é dissolvido, é abandonado o sigilo que dirige-se ao caminho oposto, que torna uma reunião de intimidades um farto e valioso cenário de estudos de uma coletividade.

Segundo Wanner (2006, p.57apud GATTI, 2008), a autobiografia pessoal tem, na contemporaneidade, servido para colaborar como registro de memória, Gatti (2008) enfatiza que o artista fruidor não mais pertence somente a si e que sua memória, ainda que pessoal, transita pelas “experiências que o corpo sente, que olhos veem, aquilo que se ouve, cheira e toca e assim se estabelece a ligação do indivíduo com o mundo, com o seu entorno, baseado sempre nas relações de troca e existência.”

Dessa forma, o método autobiográfico, tronou-se uma ferramenta necessária para a construção e reflexão do trabalho em performance; em que, interessaram minhas subjetividades, experiências e acontecimentos pessoais, e como tais questões se refletiram na minha produção artística. O uso do método autobiográfico se deu, dessa maneira, como um elemento de diálogo entre mim e a obra.

Desde os anos 1970, segundo Carlson (2010, p. 87), a performance, ligada à autobiografia e às experiências pessoais, permaneceu entre as mais comuns e, para muitos, a mais típica prática da performance feminista. Da mesma maneira, durante esse período, desenvolveram-se performances preocupadas com os homossexuais e com as várias minorias étnicas. Nesse período, como apontado por Rovina (2008, p. 18), o aumento das narrativas em primeira pessoa caminha paralelamente à crise que gerou profundas modificações no gênero autobiográfico literário.

Para além dos sujeitos comumente tratados na autobiografia tradicional, fechada em determinada classe social e política, nos anos 50 do século XX, a crítica literária amplia seu foco para os grupos minoritários. Ainda na década de 70, diversas artistas questionaram a representação das mulheres. Segundo Rush (2006), um grito de batalha, comumente ouvido “o tema pessoal é político”, teve como resultado a abertura do discurso artístico para incluir perspectivas femininas. Assim, questões como gênero, sexualidade e o papel das mulheres na arte e na sociedade integraram diversas produções.

 Nos anos 80 e 90, muitos videoartistas voltaram sua atenção para narrativas pessoais que refletiam a busca de identidade - especialmente cultural ou sexual - e liberdade política. Tais obras envolvidas com identidade e autobiografia, frequentemente se dedicam a dar voz aos indivíduos ou grupos previamente silenciados, buscam visibilidade dos normalmente excluídos por raça, classe e/ou gênero.

Para Ribeiro (2012), quando os artistas representam a si mesmos em seus processos de criação, parecem não ter a intenção de atestar, exibir quem são, mas nos mostrar possibilidades de ser vários, e, assim como definido por Hall (2006), nossas identidades como cambiantes, apontando para várias direções.

Nessas criações, arte e vida seguem interconectadas. Espaços em que as análises das biografias, as escritas de autoria dos próprios artistas, dialogam com seus procedimentos técnicos e poéticos. No processo de criação da artista francesa Louise Bourgeois (1911-2010), a lembrança é um fator de extrema importância. O foco desse processo recai nos acontecimentos passados de sua vida, que se mantêm ainda presentes em temas como infância, sexualidade, medo e trauma. Seu processo criativo se dá como uma coleção de dados de sua história. A retomada do passado, ao visitar “feridas não cicatrizadas”, é uma possibilidade de superá-lo e também reconstruí-lo sob a ótica do presente. Nas palavras de Bourgeois “Minha infância jamais perdeu sua magia, jamais perdeu seu mistério e jamais perdeu seu drama”. (MARIE; HANS, 2000, p.1). O longo percurso de criação, de mais de cinquenta anos, sempre alimentado por fragmentos de memória, é uma memória tratada de maneira obsessiva, em constante busca para dar significado e forma para suas frustrações e sofrimentos.

A memória na poética autobiográfica de Bourgeois não é como uma caixa acessada para recordar histórias já apagadas, mas um remexer de episódios que parecem ainda latentes independentes de quando aconteceram.

Segundo a artista:

Alguns de nós somos tão obcecados pelo passado que morremos disso. É a atitude do poeta que nunca encontra o paraíso perdido e é de fato a situação dos artistas que trabalham por um motivo que ninguém consegue apreender. Talvez queiram reconstruir algo do passado para exorcizá-lo. É que, para certas pessoas, o passado tem tal atração e tal beleza... Tudo que eu faço é inspirado no início de minha vida. (MARIE; HANS, 2000, p. 133)

Em 1982, Bourgeois publica na revista americana Artforum a obra Abuso Infantil, um conjunto de fotografias de sua infância acompanhadas de textos de sua autoria em forma de diário. Nos textos publicados, a artista relata a experiência de ter convivido por dez anos com sua professora, também amante de seu pai, o que se configurou para ela como um “trauma insuperável” que marca o ponto de partida para toda sua obra, como uma inconformidade com seu passado.

Figura 01 - Louise Bourgeois, imagem da série Abuso Infantil (1982)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: (MARIE; HANS, 2000)

 

A obra de Louise Bourgeois nos convoca a olhar para nossas próprias memórias, nossas subjetividades. Assim é possível pensar os sujeitos que nos tornamos, ou desejamos ser. A poética de Bourgeois exibe, também, possibilidades de uso dos arquivos pessoais na criação artística.

Os processos de construção, tanto da performance Carta Branca, quanto do espetáculo Diário Rosa se centraram nas memórias pessoais e alheias. Na abertura desses diários pessoais repletos de amargores, de narrativas dolorosas e veladas.

As mãos como o toque indesejado, insistente, corriqueiro, se fazem constantemente presentes em nossas histórias, e nelas, o ‘não’ que cai em ouvidos surdos ou mesmo a impotência para proferi-lo materializam um lugar em que me uno à outras,

histórias se fundem e mais do que a sensação de nos calar, negamos mesmo a ver, pela necessidade de continuar a conviver com histórias marcadas à ferro na memória.  

Essas histórias foram confrontadas com a minha própria experiência, minhas especificidades. Olho para mim, esse corpo de mulher negra. Desapossamento. Carta branca. Permissão historicamente concedida. Penso sobre o acesso a esse corpo, as diferenças ocasionadas pelo racismo que historicamente sexualiza os corpos das mulheres negras.

Os estereótipos discriminatórios, funcionam como espécies de autorizações para violências, são agravados pelo passado escravagista, a objetificação e subalternidade que reforçam mitos racistas como o da mulher negra hipersexualizada, vista como sempre disponível. Além do assédio e da violência sexual, as mulheres negras compõem, também, o grupo de maior incidência em questões como a exploração sexual infantil e de adolescentes e o tráfico de mulheres.

Segundo a pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizada em 2017, que entrevistou mulheres de todo o país e mostrou que mais mulheres pretas (32%) e pardas (31%) relataram violência nos últimos 12 meses do que as brancas (25%). Tratando do assédio, a porcentagem é ainda maior, em que 35% das mulheres brancas afirmaram terem sido alvo de comentários desrespeitosos ou algum tipo de contato físico contra 89% das mulheres negras.

É preciso pensar nas questões raciais nas políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, pois essa falsa homogeneidade implica uma falta de capacidade de escuta de outras mulheres diferentes das mulheres brancas. Faz-se necessário pensar interseccionalmente, não dissociar os diferentes eixos de subordinação dos quais se identificam um mesmo indivíduo.

Segundo Crenshaw (2002, p. 177), o conceito de interseccionalidade traz, especificamente, a forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes, etc.

Questionar as identidades e as diferenças e suas relações de poder significa também problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam. Audre Lorde (2009), em seus escritos baseados na “teoria da diferença”, sob o título de Não há hierarquias de opressão (2009), comenta que a ideia de oposição binária entre homens e mulheres seria extremamente simplista e ocultaria diferenças dentro da categoria mulher

relacionadas a classe e raça; embora feministas tivessem achado necessária a binarização para apresentar a ilusão de um inteiro e sólido unificado grupo, a categoria de mulher é ela mesma cheia de diferenças.

Lorde observa que as experiências das mulheres negras são distintas das mulheres brancas e marginalizadas, assim como as experiências de lésbicas não são consideradas como sendo o centro das políticas feministas. Essa posição de “Irmã Estrangeira”, a que está fora, como a autora coloca, também é experimentada nos seus enfrentamentos com acadêmicas feministas brancas. A autora comenta sobre sua posição enquanto mulher, negra e lésbica, de maneira que dentro da comunidade lésbica ela é negra, e dentro da comunidade negra ela é lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay porque ela e centenas de outras mulheres negras são partes da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão negra, porque centenas de lésbicas e homens gays são negros. Não existem hierarquias de opressão. Não existem opressões maiores ou menores e os indivíduos não possuem uma só identidade, elas se relacionam.

No processo de criação de Carta Branca, o toque indesejado das narrativas se materializou em um conjunto de mãos. Utilizo meu corpo como produtor de sentido, suporte discursivo e performativo, onde as mãos passam tocar, com a construção de uma vestimenta.

Em uma breve pesquisa de materiais, as luvas confeccionadas em látex pareceram um material ideal para a confecção da roupa, pois sua maleabilidade permitiria que pudesse ser vestido se adequando ao corpo. Assim, as luvas foram preenchidas com algodão sintético, a fim de dar forma para as mãos.    

 

Figura 02-Confecção da vestimenta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem: Íris Faria

Além do toque, era também recorrente nas narrativas pessoais, uma necessidade de conviver não só com a dor dos assédios, mas, muitas vezes, com os próprios assediadores, constantemente pessoas próximas. Penso que muitas de nós vivemos vendadas, nos 

negando até a compreender que diversas passagens de nossas vidas foram abusivas. Dessa negação a enxergar, ou mesmo pela necessidade de o fazer, surge a venda dos olhos utilizada na ação.

Figura 03- Detalhes da vestimenta

Imagem: Íris Faria

O vestido e a venda compõem, então, o figurino da performance, que consistiu em caminhar lentamente pelas ruas próximas ao Teatro Gamboa Nova. As brechas formadas pelos espaços entre as mãos do vestido deixam escapar a nudez do corpo negro, que exposto no espaço público, ainda que cercado de transeuntes e do público que assistiam do lado externo ao teatro, foi novamente assediado verbalmente.

 

Após andar pelas ruas, adentro o foyer do teatro e lá permaneço, imóvel, durante alguns minutos. Por fim, a nudez se revela de fato, quando retiro o vestido e o penduro em um cabide situado ao lado de uma televisão, que passa a exibir nos dias que sucederam a apresentação ao vivo, o registro em vídeo, juntamente com o vestido exposto. A performance desdobra-se, então, em uma instalação, enquanto obra que permite o trânsito do observador, sua participação do espaço de corpo inteiro.

 

A criação está relacionada à experimentação, faz-se necessário experimentar seja a materialidade a ser trabalhada na obra, técnicas, suportes, entre outros aspectos que levam ao amadurecimento do trabalho e do próprio artista, que passa a melhor compreender seu próprio projeto poético.

 

Alguns dias após a primeira das três apresentações de Carta Branca na ocupação Diário Rosa, notei a fragilidade das mãos de látex, que foram se rasgando devido a fricção com o algodão sintético durante a apresentação, assim, outros materiais têm sido pesquisados, no intuito de encontrar algum que possua a elasticidade do látex, porém, com uma maior resistência. Segundo Salles (2006) o percurso de criação se cruza com o acidental, que podem promover importantes descobertas.

 

A experimentação se vincula a espontaneidade, ela acontece sem regras, sem precisões, sem medo de falhas, são momentos de testes, incluem avanços e recuos e reivindicam uma liberdade no criar, que ligada à pesquisa e o trabalho empenhado do artista, dessa forma, venho experimentando materiais como malha, luvas de tecido, dentre outros.

 

Figura 05 - Performance no espaço público

                                                                          

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem: Íris Faria

 

Entendo a performance Carta Branca como uma experimentação inserida no processo de pesquisa em desenvolvimento, que busca adentrar, por meio das narrativas pessoais, nas subjetividades enquanto marcadores de diferença acerca do sujeito negro feminino através do processo criativo, em que teoria e prática, enquanto camadas inerentes à pesquisa em arte, acontecem simultaneamente e de maneira indissociável.

 

Para Cecília Salles (1998), o objeto artístico se dá como resultado sempre inacabado de um processo, um jogo de estabilidade e instabilidade que não segue modelos rígidos e fixos, a criação é, assim, observada no estado de contínua transformação. A autora acrescenta ainda, que cada versão de uma obra de arte contém, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final representa também apenas um dos momentos do processo. A performance Carta Branca é uma obra inacabada e sua construção continua se dando ao longo do percurso, sendo colocada em constante movimento.  

 

REFERÊNCIAS

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CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Rev. Estudos feministas. Ano 10 (172), 2002. pp. 171-188.

 

GATTI, Fábio. O método autobiográfico como ferramenta para o desenvolvimento da pesquisa em artes visuais contemporâneas. Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro/Escola de Dança. Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas. Salvador(Ba):UFBA/PPGAC,2008

 

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. 11ª edição.

 

RIBEIRO, Valécia. Imagens de si: processos poéticos entre o corpo do artista e sua própria imagem na mediação tecnológica. 238 f. il.Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia- UFBA. 2012

ROVINA, Márcia Regina Porto. A Poética Autobiográfica na Arte Contemporânea. Dissertação(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, SP: [s.n.], 2008.

RUSH, M. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LACERDA, Larissa. Rebate à crítica "Diário Rosa: Uma questão de urgência" de Águeda Tavares. Disponível em <https://www.revistabarril.com/edicao13> Acesso em 15 de Setembro de 2017

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MENA, FERNANDA. Uma em três brasileiras diz ter sido vítima de violência no último ano. Folha de São Paulo. Disponível em< http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/03/1864564-uma-em-tres-brasileiras-diz-ter-sido-vitima-de-violencia-no-ultimo-ano.shtml> Acesso em 10 de Setembro de 2017

 

Projeto Diário Rosa propõe uma ocupação por artistas mulheres no Gamboa Nova. Disponível em <http://portalsoteropreta.com.br/projeto-diario-rosa-propoe-uma-ocupacao-por-artistas-mulheres-no-gamboa-nova/> Acesso em 16 de Setembro de 2017

 

SALLES. Cecília Almeida, Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp: Annablume, 1998.

 

SALLES. Cecília Almeida, Redes da Criação: Construção da obra de arte. São Paulo: ed. Horizonte, 2006.

 

SALLES. Cecília Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3ª ed. revista. São Paulo: EDUC, 2008

 

WANNER, Maria Celeste de Almeida. Artes visuais método autobiográfico: possíveis contaminações. In: Arte: limites e contaminações: 15º Encontro Nacional da ANPAP Anais. v.02. Salvador: ANPAP, 2006.

ASSÉDIO, RAÇA E AUTOBIOGRAFIA NA PERFORMANCE CARTA BRANCA - Yasmin Nogueira

PRECE À MÃE

Jéssica Regina

Não sofra Mãe
Já percorremos esse caminho outrora
Nos porões úmidos e doentes
Ao som de dor e morte
Com odor de sal e sangue
Atravessamos mata, matagal e cafezal
Mãe preta
Mastigamos sem saliva o adeus a quem ficou
Mastigamos a folha seca da terra que ficou antes do mar
Engolimos a fome de noites infinitas
Engolimos toda história silenciada
Não se desespere mãe!
O que é nosso nunca foi coisa
Nosso nunca foi de se acorrentar
Nem de se afogar
Ou sufocar
Respire mais uma vez
Pois nosso é tudo o que sentimos
Nosso é tudo que aprendemos sem sala de aula
É tudo que sabemos ao fechar os olhos
e ao abrir os ouvidos de dentro
Olhe pra tudo de novo Mãe Preta
Olhe pra saia rasgada que boneca foi
Olha pro leite negado que pro branco foi
Olha pra cria subtraída pela tortura
Pra cria que foi só sua
E sua não foi no contrato
Mãe preta seu nome
É de todas as mãos que amassaram esse chão maldito
Toda mão de preto que colheu o algodão branco
Todos as rainhas e reis que perderam o reino
Seu nome é que ecoa na batida dura da mão sobre o couro

Seu nome é que chamamos na hora de dor
Seu nome é que chamamos quando pensamos amor
Mãezinha
Nada tem de menor
Nada diminutivo
A grande gestora
Genitora
A genética
E a gênese
Mãezinha
Grande
A grande saia, grande asa, grande abraço
Olha pra mim mãe preta
Quanto morro eu já subi
Lágrima sozinha espalhada na fronha
Contigo aprendi a parir
Filho no colo, filho nas costas
Filho nos braços
Chegando e saindo
Quanto filho perdido
Filho arrastado, filho amarrado
Crescendo e correndo
Quero ver filho voando Mãe!
Quero ser de ti minha Mãe!
Quero ser tua filha a voar!

JÉSSICA REGINA

26 anos, mãe do Diogo, estudante de Letras e moradora de Volta Redonda/RJ.
Comecei a escrever poesia na infância e durante essa fase até a adolescência, a poesia era só a
minha forma de deabafar. Hoje a poesia é a minha forma de me conectar com o mundo e
expressar as minhas impressões sobre ele, o que penso e o que sinto, pela ótica de uma mulher
negra e mãe.

Prece à mãe
Mulheres Negras - Ananda Santana

ANANDA SANTANA

22 anos,mulher negra, estudante do 7º semestre do Bacharelado Interdisciplinar em Artes - UFBA, técnica em Comunicação Visual, residente desde sempre em Itapuã - Salvador/BA. Grafita a cerca de 03 anos e junto a esse período identifica-se e assina seus trabalhos como @Srt.as, perfil onde divulga seus graffits e ilustrações, nome que adotou como a união de várias, acreditando ser um nome plural e abrangentes, ser várias em uma só. Costuma trazer como temática central dos seus trabalhos a representatividade da mulher negra em todos os espaços possíveis, é seu mecanismo de luta e manifesto diário!

Mulheres negras, ilustrações, graffiti, Salvador - BA, aquarelas

Toada de Molho - Bell Puã

TOADA DE MOLHO

Bell Puã

sou as ondas que trouxeram
corpos negros
para a labuta de noites
dias inteiros
parecia não saborear chegadas
estava sempre de partida
em embarcações covardes
me quebrava na costa
depositando mercadorias
cheias de saudades

sou o suor lubrificante
de rostos explorados
passo a passo atolando-se
em quilombos de lama, descalços

fuga do açoite
de choros na calada da noite
separações à venda
mães condenadas a diáspora
de seus pretos filhos
pessoas antes propriedade
de um branco alguém
mães condenadas ao desejo obscuro
dos senhores de ninguém

sou o gozo de rebentos-esperança
bolsa estourada
aos gritos esparramada
aos gritos a chegada
da escura criança

imersa em enchente
nada contra a correnteza
pede um dilúvio
reza tamanho volume
pra lavar a tristeza
limpar o orgulho dos nossos irmãos
corpos banhados em lamento:
navios, senzalas, favelas
prisões, sem terras, mangue
histórias líquidas sobretudo
inundadas de lágrima e sangue

clamo a África malemolente
derramo-me sons em afluente
sou os braços dos rios
abraço as margens do Capibaribe
em minhas entranhas
navegam homens-caranguejo
esperados diante cirandas
raízes femininas entoam desejos
purificam dores, desencantos, sujeiras

sinto a voz que enxágua o passado
no canto
das sereias lavadeiras

BELL PUà

é Isabella Puente de Andrade, poeta slamer recifense. Vencedora do Campeonato Nacional de Poesia Falada - Slam BR 2017, integra o coletivo SLAM das MINAS PE como poeta e o UM Coletivo como bailarina e performer. Mestranda em História pela UFPE, busca atropelar as fragilidades e fortalecer os afetos, compondo também o coletivo negro Afronte, desenvolvendo atividades de consciência racial em seu estado.

IRIS BRITO LOPES

acredita que fotografar é um ato político. Fotógrafa negra e comunicadora popular, cria narrativas artísticas contra-hegemônicas como disputa de consciência e ocupação de espaços.

No ensaio fotográfico "Não sou tuas nega: a insubordinação das mulheres escravizadas" narra, junto com a bailarina-intérprete Margot Oliveira, a resistência e o enfrentamento das mulheres negras durante a escravidão.

Não sou tuas nega - Iris Lopes

VELADAS:

UMA REFLEXÃO SOBRE A INVISIBILIZAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NAS ARTES VISUAIS DA BAHIA

Tina Melo

O presente estudo visa refletir acerca do processo de invisibilização sofrido pelas mulheres negras e suas produções nas artes plásticas da Bahia, compreendendo as dificuldades enfrentadas e a luta destas mulheres para promover uma inserção digna numa sociedade que ainda carrega os estigmas e preconceitos da escravidão. Analisaremos assim os processos de conquista dos direitos civis destas até a introdução no universo das artes, restrito durante muito tempo ao acesso dos homens – brancos, vale ressaltar – considerados então como “grandes mestres” ou “gênios” das linguagens artísticas. Ressaltaremos a trajetória de algumas artistas brasileiras como forma de propor um antagonismo entre o epistemicídio[1] - que gera carências de bases mais consistentes de pesquisa sobre estas autoras - e uma produção que se faz presente há longos anos na nossa História, sem contudo ser conhecida e reconhecida pela sociedade e pelas próprias mulheres negras - que acabam por não acessar esse conhecimento - o que sedimenta os ideais sexistas e racistas de domínio da produção de conhecimento.  

A História, e mais especificamente a História da Arte tem sido contada através de uma perspectiva reducionista, que legitima uma parcela da produção artística, ocultando a importância da participação de negras e negros no seu desenvolvimento.   Portanto, faz-se válido o estudo da produção artística realizada por negras e negros no Brasil e que discute suas questões, a fim de valorizar as epistemologias negadas historicamente, e de abrir caminhos e possibilidades de aproximação e reconhecimento da população com a arte que não se enquadra nos padrões etnocêntricos europeus, e por consequência, desestruturar a estratégia que visou repelir o povo negro do processo civilizatório nacional, na perspectiva de reafirmar o pluralismo epistemológico que reconheça as múltiplas presenças raciais, culturais, sociais e para o alargamento das possibilidades de convivência e existência mais horizontais na sociedade.

Preliminarmente, por questões de contextualização da área histórica mencionada, havemos de nos recordar do surgimento da História da Arte como disciplina acadêmica em 1844 na Universidade de Berlim. Enquanto conhecimento formalizado na Europa - num século em que as teorias de inferioridade das raças não brancas estavam em pleno desenvolvimento - portanto, podemos compreender um pouco por quais intencionalidades e motivações o estudo das transformações de formas, estilos e conceitos expressos pelas artes foram norteados.

 

Ainda no século XVIII, antes mesmo que esta se tornasse uma disciplina acadêmica, o historiador alemão Johan Joachim Winckelmann estabeleceu os fundamentos para o estudo da História da Arte, aplicando então categorias sistemáticas de estilo. Ele foi o primeiro a estabelecer diferenças formais entre as artes clássicas (de Grécia e Roma), o que influenciou o surgimento do Neoclassicismo no período.

 

Tendo em vista que a arte foi entendida durante longo período como um dos principais critérios para medir o grau de civilização de uma sociedade, como destaca Marilena Chauí (2008), já percebemos ser complexa a relação das/os artistas negras/os com os mecanismos de historicização, por nos falar um tanto sobre o desenvolvimento humano universal – processo do qual, costuma-se alijar as contribuições negras. Dessa forma, passamos a ter acesso à “colonialidade do saber” (MIGNOLO, 2005; QUIJANO, 2010) principalmente através dos livros e da história por eles contada, de maneira que quando nos deparamos com a anulação dos negras e negros nesse processo, é possível constatar o ocultamento de identidades e de suas contribuições para o desenvolvimento das sociedades ao longo da História, o que foi utilizado para justificar a colonização, a dominação política e a exploração econômica das riquezas do povo negro.

 

O epistemicídio[2], de acordo com a formação do próprio termo (“episteme”, relacionado a conhecimento e “homicídio”, crime que mata outrem), vem a ser o extermínio do conhecimento de alguém, que no caso do presente estudo se caracteriza como o indivíduo africano ou ascendente do mesmo, processo explicitado de maneira bastante evidente nas palavras da filósofa Sueli Carneiro:

 

Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar, pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana no patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos damos o nome de epistemicídio. (Carneiro, 2005: s/p).

 

 

Ao desenvolver o conceito de epistemicídio no quadro teórico da Sociologia das Ausências, Santos (2003) procura evidenciar que aquilo que não existe é, na verdade, produzido como não existente, como uma alternativa não credível ao que existe, o que incide numa invisibilidade produzida, construída de modo a apresentar cenários hegemônicos com verdades não questionáveis. Assim, a Sociologia das Ausências é concebida como um instrumento cognitivo de leitura do mundo dentro de realidades mais expandidas, para além de uma verdade universal, procurando transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles, transformar ausências em presenças.

 

A invisibilidade com que é tratada a produção artística do povo negro é corrente na própria historiografia da arte, contudo quando tratamos da produção das mulheres negras a questão ainda fica mais complexa, de modo que observamos a ausência destas desde a historiografia, até o que venha denominar “circuito artístico”, onde estão inseridos desde conjuntos de indivíduos como: marchands, curadores, críticos, como também as instituições, como os museus, galerias e salões de arte, esse conjunto de indivíduos e instituições é quem muitas vezes movimentam ou fazem surgir um mercado de arte, no qual dificilmente encontraremos a presença da artista negra.

 

Por princípio, é necessário que analisemos o conceito de raça[3], entendido aqui como um conjunto que vai englobar características fenotípicas e, também posicionamentos políticos. Contudo, não podemos deixar de salientar os problemas práticos enfrentados pelos indivíduos de fenótipo negro, perante uma sociedade que se autodefine democrática no que tange as questões raciais, mas que no cotidiano traz vestígios da mentalidade do século XIX, com bases no Evolucionismo Social[4], e nas teorias seguidas por Nina Rodrigues[5], que visavam apontar a degeneração, a suspeita e o crime como referências inatas ao indivíduo negro. 

 

Este legado é traduzido na atualidade, dentre outros fatores, através do genocídio da população negra, e da percepção generalizada de que essa parcela da sociedade não é capaz de produzir conhecimento, valores e bens culturais de categoria elevada. De modo que relega-se toda a produção de baixa qualidade intelectual, artística, cultural, ou de comportamento às margens do sistema leucodérmico[6].

 

Esta seria uma questão inicial, mas prosseguindo o percurso histórico das mulheres negras na sociedade brasileira. Passada a fase das teorias racialistas do século XIX, observamos o caminho da valorização da mestiçagem do país, como sendo saída possível para o não enegrecimento e tentativa de harmonização política da classificação racial – de modo, que, se não

existem raças, não existe racismo. Assim, o mito da democracia racial, inspirado pelo sociólogo Gilberto Freire e amplamente difundido pelas elites políticas e intelectuais do país, fundamentou o arcabouço que informa a imaginação de diretores, compositores e autores que retrataram contemporaneamente a figura das mulheres negras como portadoras dos “quitutes sexuais”, como diria o próprio Freyre. De acordo com Raquel Luciana de Souza em seu artigo “De Chica a Helena: Representações de gênero, raça e violência simbólica na mídia brasileira”:

Na concepção romantizada e sexista de Freire, os portugueses chegaram e consolidaram sua presença no Brasil a partir de um envolvimento consensual e harmonioso com mulheres africanas que, segundo ele, eram irresistíveis aos colonizadores que “gostosamente se misturavam com as mulheres de cor logo ao primeiro contato”. No entanto, a sua visão fantasiosa mascara a natureza violenta e opressora característica do processo de colonização européia e das relações entre colonizadores, mulheres africanas e suas descendentes escravizadas, dentro de um contexto de relações de poder extremamente desiguais. (Souza, 2009: 03).

Dessa forma, percebemos que a situação das mulheres negras no Brasil contemporâneo manifesta na prática, uma continuidade da realidade vivida no período  escravocrata, salvo algumas conquistas, pois permanecem em último lugar na escala social e é aquela que mais experimenta as desvantagens do sistema sexista e racista do país.

Diversas pesquisas realizadas nos últimos anos mostram que a mulher negra apresenta menor nível de escolaridade com relação às brancas, trabalha mais, porém com rendimento salarial menor, e as poucas que conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial e ascender socialmente, ainda enfrentam  a visão estereotipada no campo afetivo, sendo encaradas como objetos sexuais e não mulheres dignas para compor um relacionamento.

Há que se ressaltar as agruras enfrentadas por estas no processo de inserção social no pós-abolição, no sentido de que as mulheres negras constituíram-se como verdadeiras matriarcas, sustentando por muitas vezes os filhos sem a presença ou colaboração do marido, pois mesmo quando este se fazia presente, em muitos casos, significava alguém a mais para ser sustentado. O Brasil, que se favoreceu do trabalho escravo ao longo de mais de quatro séculos, colocou à margem o seu principal agente construtor, o povo negro, que passou a viver na miséria, sem trabalho, sem possibilidade de sobrevivência em condições dignas. Com o incentivo do governo brasileiro à imigração estrangeira e à tentativa de extirpar o negro da sociedade brasileira, houve maciça tentativa de embranquecer o Brasil.

Desta maneira, percebemos que se desenvolve aqui, no caso das artes plásticas uma outra especialidade, que não está necessariamente relacionada às capacidades criativas ou ao apuro técnico, tendo em vista que muitas negras e negros já desenvolviam atividades artísticas de estética ou funcionalidade laboriosas desde os tempos da escravidão. Primeiro com a produção dos objetos rituais que tempos depois foram estudados por Nina Rodrigues, e outros, e mais tarde com o desenvolvimento de obras sacras católicas, ao menos desde os oitocentos, quando a estes era permitido o acesso a tais afazeres. A especialidade estaria relacionada com o afastamento da cor negra na cútis do iluminado artista, o que denotaria mais nobreza e valor na escalada social.

Mas para compreender esse processo de miscigenação branqueadora e ascenção social é necessário mencionarmos o papel da Missão Artística Francesa de 1816, contratada pelo imperador para criação da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, necessariamente seguindo os moldes da Académie Royale de Peinture et Sculpture, fundada em Paris no ano de 1648, e considerada o principal centro de ensino de artes da época.

 

A Missão foi composta por um grupo de artistas estrangeiros responsáveis por instalar um sistema de instrução oficial para os artistas da colônia, o que obinubilou, ou quase impossibilitou o protagonismo negro na história das artes nacionais, que até esse período encontrava-se em franco desenvolvimento na produção da imaginária sacra católica e de outras manifestações, como afirma Araújo:

 

A Academia exerce um poder legitimador inconteste nas artes plásticas de uma sociedade desprovida de iniciativa, de demanda comercial (com a referida execução da retratística) e sobretudo da cultura visual independente. Nessas condições, é de se prever que, dada sua congênita vocação áulica, a Academia funcionasse antes de mais nada como uma barreira tendendo a dificultar consideravelmente ao negro e ao mulato o acesso à condição de artista, que ela, apenas, estava habilitada a conferir. (Araújo, 1988: 136).

 

 

Antes da Missão e consequentemente da implantação da Academia a produção artística era moldada segundo os cânones europeus, contudo produzida por indígenas, negros e africanos, que acabavam por imprimir suas marcas na estética dos trabalhos, a exemplo de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e Manuel da Costa Ataíde, o Mestre Ataíde, ambos representativos do período que hoje conhecemos como Barroco.

 

Voltando às questões sociais é necessário recorrer também à compreensão da legislação que desfavoreceu o povo negro no Brasil, antes mesmo da abolição em 1888. No Brasil Colônia existiam legislações locais diferentes sobre quem poderia participar das eleições. Em algumas vilas, eram eleitores ("homens-bons") os proprietários de grandes extensões de terra; em outras, eles precisavam ter comprovada a sua origem na nobreza de Portugal. Mas em geral existia (até 1773) a restrição para a inclusão de cristãos-novos (descendentes de judeus) nas câmaras municipais.


Não católicos também não tinham direito ao voto.

 

Com a Reforma Saraiva de 1881 instituiu-se o censo (isto é, a renda mínima para votar). Foi de início um corte bem drástico, reduziu o número de eleitores primários ("eleitores de paróquia") de 1 milhão de votantes (10% da população) para 145 mil (1,5%).  Já na Constituição de 1891 chegou-se ao fim ao censo eleitoral, e estabeleceu que podia ser eleitor todo brasileiro que fosse alfabetizado, independente da renda ou da religião, contudo, mulheres não.

 

O voto foi estendido às mulheres em 1932.  Sendo que apenas partir de 1945 é que podemos considerar a realização da primeira eleição nacional realmente livre no país. A Constituição de 1988 considerou a discriminação racial um crime e instituiu a obrigação do Estado no oferecimento dos direitos sociais, o que não significou o reconhecimento dos direitos iguais entre os/as brasileiros/as negros e negras, que ficaram por muito tempo impedidos/as de estudar por não ser “brasileiros natos”, ou por não ter determinado salário, apesar de estarem livres favorecidos pela "Lei Áurea”.

 

As mulheres na condição de empregadas domésticas já se organizavam desde a década de 1930, contudo somente oitenta anos depois conseguem legislação que assegure mais dignidade, além de constatarmos que ainda é inferior a quantidade de negras/os na Educação Básica, muito menos ainda são as/os que estão no Ensino Superior, ou que mesmo alcançam a Pós-Graduação e o Doutorado.

 

Assim, as mulheres negras que conquistam melhores cargos no mercado de trabalho despendem uma força muito maior que outros setores da sociedade, sendo que algumas provavelmente pagam um preço alto pela conquista, muitas vezes, abdicando do lazer, da realização da maternidade, ou de relacionamentos afetivos. Pois, além da necessidade de comprovar a competência profissional, têm de lidar com o preconceito e a discriminação racial que lhes exigem maiores esforços para a conquista do ideal pretendido.



 

A questão de gênero é, em si, um complicador, mas, quando somada à da raça, significa maiores dificuldades para os seus agentes. De modo que compreender a inserção das mulheres- e mais radicalmente das negras- nas esferas da sociedade, e por conseguinte na arte, não se faz tarefa simples, pois é necessário analisar de que modo elas se fazem presentes em sua nudez nas representações pictóricas, escultóricas ou nas mais diversas técnicas, porém ausentes enquanto autoras, agentes e criadoras. 

 

Existe a necessidade de analisar essa lacuna, pois vencidos os obstáculos de uma sociedade escravocrata que relegava as cozinhas e senzalas para as mulheres negras, caminhamos na luta pela ocupação dos espaços de poder, com significativas conquistas, de modo que já não se trata da falta da produção de mulheres negras nas artes, e sim, da ausência de registros, escritos, bibliografias e estudos acerca da mesma, ou mesmo da visibilidade destes estudos.

Precisamos então, a partir dos questionamentos do referencial que prioriza a produção artística pautada no ideal dos “Grandes Mestres” e “Gênios”, que são caracterizados como os homens-brancos-héterossexuais-europeus, para valorizar e visibilzar os referenciais que valorizam e visibilizam a produção das mulheres negras artistas, suas estéticas e pensamentos a fim de viabilizarmos um pluralismo epistemológico capaz de contemplar a diversidade silenciada na contemporâneo, e gerar novas percepções acerca das mulheres e especificamente da mulheres negras num contexto de estigmas perversos e atrasados, que insistem em sedimentar-se na mentalidade e no imaginário social do Brasil.

 

Percebemos nas imagens produzidas por artistas brasileiros a manutenção de esteriótipos  frequentemente utilizados nas representações do corpo negro feminino, que são a sua exotização e insinuação desse corpo como território passível de exploração. Analisando obras produzidas por estrangeiros, no início, como Albert Eckhout no século XV, os desdobramentos artísticos nos séculos seguintes e mesmo obras do século XX, como os trabalhos de Carybé ou mesmo de Tarsila do Amaral – que apesar de ser mulher, ainda mantinha um olhar de exoticidade com relação à mulher negra – reafirmaremos esta percepção.

É notável então que a maneira estereotipada de retratar as mulheres negras somente é abandonada quando as artistas plásticas negras passam a ter maior acesso aos espaços de produção, circulação e difusão da arte, o que se deu de maneira mais efetiva e reconhecida tardiamente – já no século XX. É nesse período que assistimos na Bahia Yêdamaria ser a primeira mulher negra a receber bolsa de estudos do mestrado no exterior – Estados Unidos – e o despontar de outros talentos, mentalidades e resistências negras femininas.


Podemos mencionar artistas que alcançaram certo relevo nacionalmente ou em suas cidades e estados, tais como Renata Felinto, Rosana Paulino, Michelle Mattiuzzi, Sônia Gomes, Maria Amélia da Silva, Ana 

das Carrancas, dentre outras. Contudo, embora estas mulheres tenham superado as barreiras do acesso aos meios de produção e distribuição do trabalho artístico, percebemos que ainda há certa invisibilização desta produção, de modo que apesar das conquistas observamos que muito ainda precisa ser feito no sentido de valorizar e tornar conhecidos estes trabalhos e suas criadoras, a fim de desconstruir a ideologia que oculta suas contribuições do processo de desenvolvimento da cultura e da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS:

 

ARAÚJO, Emanoel. A Mão Afro-Brasileira: Significado da contribuição artística e histórica.São Paulo: Tenenge, 1988.


CARNEIRO, Sueli. Em Legítima Defesa. In: SANTOS, Jaqueline Lima. A produção intelectual das mulheres negras e o epistemicídio: uma breve contribuição. Disponível em:

<http://jaquelinecontraoepistemicidio.blogspot.com.br/2010/06/producao-intelectual-das-mulheres_09.html>. Acesso em:14 Nov. 2013.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. Secretaria de Cultura: Fundação Pedro Calmon. Salvador, 2009. (Coleção Cultura é o Quê?, v.1).

FELINTO, Renata.  A representação do negro nas artes plásticas brasileiras. São Paulo, Fev. 2011. Disponível em:< http://omenelick2ato.com/artes-plasticas/dialogos-e-identidades/>. Acesso em 14  Out. 2014.

RODRIGUES, Juliana; BOTELHO, Denise. Produção artística de mulheres negras na formação da arte contemporânea brasileira, e as produções das artistas plásticas Rosana Paulino e Yêdamaria. In: Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades: Direito, Relações Etnorraciais, Educação, Trabalho, Reprodução, Diversidade Sexual, Comunicação e Cultura. 2011. Salvador. Anais do Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, UNEB, Diadorim, 2011, p.1-14.

[1] Estamos considerando o epistemicídio a partir do entendimento de Boaventura de Sousa Santos (2007) quando diz que a ciência moderna promove um processo de destruição criativa em defesa do seu privilegiado estatuto, de modo que tudo que opera externamente ao seu modelo de racionalidade ocidental é relegado à subalternidade e exclusão dos sistemas de poder. Neste caso, referimo-nos à produção artística de mulheres negras, que integram um eixo desprivilegiado do foco hegemônico e que vêem seu conhecimento ocultado pela carga de colonialismo e machismo que ainda imperam na sociedade.

[2] Estamos considerando o epistemicídio no entendimento de Boaventura de Sousa Santos quando diz que a ciência moderna promove um processo de destruição criativa, em defesa do seu privilegiado estatuto, de modo que tudo que opera externamente ao seu modelo de racionalidade ocidental é relegado á subalternidade e exclusão dos sistemas de poder.

[3] “Convém explicitar que raça aqui é entendida como noção ideológica, engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes. Apesar de estar fundamentada em qualidades biológicas, principalmente a cor da pele, raça sempre foi definida no Brasil em termos de atributo compartilhado por um determinado grupo social, tendo em comum uma mesma graduação social, um mesmo contingente de prestígio e mesma bagagem de valores culturais.” (BASTIDE, R. e FERNANDES, F. apud. SOUZA, 1983).

[4]  Refere-se às teorias antropológicas de desenvolvimento social segundo às quais acreditava-se que as sociedades têm início num estado primitivo e  tornam-se mais civilizadas gradualmente ao passar do tempo. Nesse contexto, o primitivo é associado com o comportamento animalístico, enquanto civilização é associada à cultura européia do século XIX.

[5] (1862-1906) médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo. Influenciado por Cesare Lombroso, acreditava na necessidade de códigos penais diferentes para raças diferentes, buscando a degenerescência e tendência ao crime como origens naturais, fruto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e cisões.

[6] Termo utilizado por Carlos Moore, Doutor em Ciência Humanas e Etnologia, para designar raças brancas (caucásico- europóide e sino-nipônico-mongol).

VELADAS: UMA REFLEXÃO SOBRE A INVISIBILIZAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NAS ARTES VISUAIS DA BAHIA

A Universidade é salva

Suelen Queiroz

Curitiba! no segundo em que louva
O pé de um tirano devasso, ganha um prêmio
vil.
A voz aprisionada na Gruta das encantadas,
o acorrentado se encolherá.


Banido o espírito divino,
Contempla o futuro de infâmia do reino ébrio.
Como aquelas profecias dos sonhos
Falam na escuridão em voz alta;


E suas palavras ameaçadoras,
Suas palavras, cuja luz brilha
do soberbo e altivo coração,
segurando uma espada na noite.


Elas emocionarão o Paço da Liberdade,
E a Rua das Flores,
E o cabelo das árvores, dos ipês amarelos
E o céu como amigo;


Será a verdade que não se nega,
O grito que persegue os pardais,
A respiração desconhecida que estremece
a lâmina da grama nos funerais;


Eles gritarão: vergonha do infame,
Para os opressores, para os assassinos!

E as almas que as estrelas acompanhavam
Serão chamadas de guerreiras!


Nas vidas errantes que estão se transformando,
Uma tempestade escura, irá pairar;
E se aqueles que morrem dormem,
Aqueles que estão mortos acordarão.

SUELEN QUEIROZ

A universidade é salva -Suelen Queiroz

CORPAS

Saudações Negras Femininas!

Pedimos a Bença às mais velhas e às mais novas. A Bença à OBÌNRÌN que irmana conosco objetivos em comuns que são tão nobres.

 

Somos o CORPAS - ENCONTRO DE PERFORMANCES DE MULHERES NEGRAS/RJ - PROVOCAÇÃO NEGRA ESTÉTICA E POLÍTICA

 

Muitas mulheres negras artistas tem se reunido e circulado em diferentes espaços artísticos. Perguntamo-nos quantas somos, onde estamos e por quais motivos ainda somos tão desconhecidas e nossa arte pouco valorizada. Esses são alguns dos questionamentos que nos levaram a construir o CORPAS. Nos meios tradicionais de arte nós, mulheres negras, representamos um acontecimento relativamente recente, que toma forma com uma paulatina ocupação de espaços de formação e produção, resultando no surgimento de trajetórias significativas na construção da atual cena artística brasileira. O panorama artístico das últimas décadas reúne vasta produção operada por mulheres negras, no entanto, grande parte de fazeres e artistas permanecem invisibilizados.

 

CORPAS – Encontro de Performances de Mulheres Negras é uma ação concebida pelas artistas negras Danielle Anatólio, Lais Castro, Mariana Maia e Simone Ricco, configurada para reunir, promover trocas de experiências e ampliar a visibilidade de fazeres artísticos. O encontro se propôs pensar o ato performático de mulheres negras, seus significados, sua produção e circulação, priorizando refletir sobre performances realizadas nas periferias, espaços atravessados por fatores sócio-culturais e étnico-raciais que pesam sobre a produção e circulação dos projetos artísticos. Neste sentido, escolhemos o mês de Julho para esta realização como forma de reverenciar o dia 25/07, Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, data que é significativa no histórico da luta das mulheres negras. Queremos abrir a roda para acolher umas às outras e refletirmos juntas sobre os a desafios que temos na cena artística enquanto mulheres que portam corpas, intelecto, afetividades, saberes e histórias negro-femininas.

O CORPAS foi não só espaço de visibilidade e credibilização da arte produzida por mulheres negras, mas também lugar de trocas e escuta sensibilizada sobre as tessituras crítico-criativas dessas artistas. Além disso, atuando como espaço de experimentação e debate, o encontro investigou aspectos presentes na cena e por trás da cena performática tocada por mulheres negras em espaços periféricos.

A escolha da Zona Oeste como região periférica abordada está relacionada a diversos fatores, um deles a alta concentração de habitantes negros nos 39 bairros desta área detentora do menor IDH* (Índice de Desenvolvimento Humano) do município, marcada por significativas desigualdades sociais e realidades contrastantes. A população da zona oeste representa 41,36% (2.614.728 habitantes) do total do município do Rio de Janeiro (6.320.446 habitantes). No entanto, a despeito do cenário adverso ao fazer artístico, predominante na maioria dos bairros, mulheres negras da região ganham espaço na cena performática da cidade, aguçando o interesse em investigar seus atos performáticos e questões a eles relacionadas.

 

Se a periferia é colocada para fora, para longe, como pensá-la no centro das discussões, do olhar? A arte pode fazer da periferia um ponto de convergência? Qual a potência da narrativa periférica? O encontro cura ou é procura? Vamos nos encontrar, ver e ouvir o que tem a dizer e mostrar essas CORPAS negras?

 

Fizeram parte dessa grande roda 25 mulheres negras que se inscreveram com vídeo-performances, performances, teatro, dança e música: Carlla Ramos Maranhão, Charlene Bicalho, Coletiva Agbara Obìnrìn, ColetivAs, Flavinny Oliveira, Jaqueline Calazans, Joyce Oliveira, Lais Lage, Michele Pereira da Silva, Scheilla SSol, Sulamita Costa, Verônica Bonfim, Andréia Oliveira, Aparecida Silva, Elis Pinto, Flaviane Damasceno, Renata Sampaio, Aloha DeLa Queiroz, Rafaela Ferreira, Aline Valentim, Lais Castro e Mariana Maia.

 

Convidadas: Denise Espírito Santo e Ana Paula Patrocínio

Colaboradoras: Daniele Araújo, Danielle Coutinho, Lourence Alves, Grasiela Araújo, Dai Ramos, Thaís Alvarenga e Marielen Romão

Organização: Danielle Anatólio, Lais Castro, Mariana Maia e Simone Ricco.

 

LOCAL: Rio de Janeiro, Zona Oeste (CASA BOSQUE) e Centro (TERREIRO CONTEMPORÂNEO)

ACONTECEU nos dias 21 e 22 de Julho de 2018

Sobre o Corpas
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